sábado, 3 de maio de 2008

O Mal Que o Homem Faz: Utilitarismo

Adotarei uma forma bastante sistemática, seguindo o exemplo de Peter Singer para evitar maiores problemas lingüísticos. Assim, para recuperar a crítica do utilitarismo, começo com uma definição do que chamarei de utilitarismo aqui. Esse conceito é precisamente aquilo em relação a que eu sou contra. Se alguém achar que utilitarismo é outra coisa, nesse caso eu não estarei criticando o utilitarismo, mas essa outra coisa que estou chamando de utilitarismo por engano.

Utilitarismo: Doutrina filosófica que defende o teste do bem para a solução dos problemas morais. O teste do bem é um cálculo acerca das conseqüências de um determinado ato. Somando-se as conseqüências boas e subtraindo as ruins temos um coeficiente de utilidade do ato. Se o resultado do teste for positivo é um ato útil porque gera mais bem do que mal. Se o resultado do teste for negativo é inútil (mais precisamente contra a utilidade) porque provoca mais mal do que bem.

Não confundir utilitarismo com conseqüencialismo.

Conseqüencialismo: Doutrina filosófica bem menos pretensiosa que sugere (como o imperativo categórico Kantiano suavizado de Rorty faz) que devemos levar as conseqüências do ato, para além do ato em si, em consideração, para avaliar moralmente esse ato.

Com o conseqüencialismo concorda Dworkin, por exemplo, e provavelmente Rawls. Porém os três são declaradamente antiutilitaristas, pelas diferenças perceptíveis nos conceitos acima.
Dito isso, passo a analisar as conseqüências do utilitarismo e conseqüentemente ás críticas diretas ao utilitarismo, com as quais pretendo dizer que não sobra nada de útil no utilitarismo e que essa doutrina deve ser abandonada integralmente.

A primeira crítica: o racionalismo não discursivo ou abrangente.

O primeiro problema apresentado pelo utilitarismo, é a sua tendência absolutizante de racionalizar o discurso moral. A idéia central aqui é a seguinte: se existe um teste objetivo para a validade de um ato moral, basta aplicar o teste e descobrir a validade do ato. Nesse sentido, uma pessoa que faça o teste da utilidade tem razão em si, independente de uma discussão pública. Isso é um prejuízo gravíssimo, se levarmos em consideração que o pluralismo de concepções de bem é o resultado natural do livre exercício da razão.

Antes que me digam que usei algum termo metafísico conceituo (com John Rawls):

A capacidade de ser racional é a capacidade de se elaborar concepções de bem. (Pensar individualmente)

A capacidade de ser razoável é a capacidade de elaborar um sentido de justiça, de possibilitar aos outros que realizem suas próprias concepções de bem. (Pensar com o outro)

O resultado de um racionalismo não razoável ou discursivo, ou de um racionalismo abrangente, é a imposição do bem, por parte daquele que conseguir, sejam quais forem os meios. Isso porque uma vez que a concepção de bem sendo “verdadeira” a partir do teste não precisa levar em consideração o que os outros possam achar melhor. Nesse sentido é também paternalista.

A segunda crítica: a prioridade do bem sobre o justo.

Uma vez que o pluralismo de doutrinas morais é o resultado natural do livre exercício da razão (claro que você pode acreditar, com Kant, que o livre exercício da “verdadeira” razão iria produzir a homogeneidade das doutrinas morais como resultado natural), torna-se necessário protegermos as doutrinas morais da abrangência de umas às outras. Isso significa ser justo com elas. Uma vez que as concepções de como seria a justa proteção da liberdade, temos como limitação ao conceito de justo que ele deve proteger também as concepções de justiça da abrangência de umas às outras.
O utilitarismo inverte essa ótica do Liberalismo Político, pois estabelece a prioridade do bem sobre o justo, e não do justo sobre o bem, como vimos acima. Independentemente de como se poderia determinar o bem, uma vez que esse fosse determinado, deveria ser imposto, mesmo contra as diversas concepções de bem opostas.
Para demonstrar melhor os problemas gerados por essa premissa, irei utilizar um case, que necessitará ignorar alguns problemas que serão abordados mais adiante.
Mário é um homem saudável de 29 anos, que vive às da mãe e cujas atividades se resumem a caminhar no parque municipal de Belo Horizonte, e emprestar livros da biblioteca estadual, livros que lê vorazmente e devolve em perfeito estado. Algumas vezes, Mário se incomoda com o lixo no chão do parque e os recolhe para jogar nas poucas latas que a prefeitura instalou no local para esse fim. Mário é nesse sentido uma pessoa boa, mas como lê muito e não tem muita habilidade social, se tornou um indivíduo bastante chato, sendo querido apenas por sua mãe.
Enquanto Mário caminha pelo parque, três pessoas se encontram a beira da morte no Hospital Evangélico necessitando de transplantes para sobreviverem. Essas pessoas mantém hábitos similares aos de Mário, com a diferença de que são respectivamente, um médico sanitarista, um juiz defensor dos direitos humanos e um religioso que coordena uma casa da sopa, que distribui alimento aos desabrigados, além de serem pessoas muito simpáticas e divertidas, e de agradarem sobremaneira a todos que com eles convivem.
Se Mário morrer, seus órgãos poderiam ser transplantados, salvando as vidas dessas três pessoas, e ainda outras, possivelmente. Como conseqüência disso, as três pessoas poderiam voltar a fazer o bem que faziam anteriormente, curando doentes, protegendo pessoas da violência do Estado, e alimentando os famintos, além de alegrar as muitas pessoas que os amam e de reduzir os custos para a saúde pública que está sobrecarregada com os três internamentos. Em contrapartida, a morte de Mário iria apenas provocar a tristeza de sua mãe, além de um ou dois papeis de bala a mais no chão do parque municipal.
Não resta dúvidas após a análise das circunstâncias, que a morte de Mário com o intuito de retirar seus órgãos para transplante provocaria muito mais bem do que mal, sendo portanto um ato com um elevado grau de utilidade. Deveríamos matar Mário para transplantar seus órgãos?
O utilitarismo seria forçado a dizer que sim, afinal de contas, sua morte representaria um bem para quase toda a sociedade. Mas isso é justo? Parece que não, todos nós pelo menos concordamos que não deveríamos adotar essa estratégia a partir de agora. Seria injusto, por que para Mário, sua vida é um bem maior do que a vida das outras três pessoas, e seria injusto por que para a mãe de Marcos, sua vida é mais valiosa do que a vida das outras três pessoas. Além é claro, do fato de que Marcos não pode ser culpado por sua constituição saudável.
Um utilitarista poderia me dizer que esse é um exemplo de caso limítrofe, que não jogaria por terra o utilitarismo por ser uma situação específica, e serviria apenas para mostrar que o utilitarismo não é a melhor solução em todas as ocasiões, mas poderia ser em diversas outras situações.
Poderíamos então elaborar muitos outros exemplos, hipotéticos ou reais, mas seria impossível resolver a ressalva dessa forma, pois nunca iríamos esgotar todas as situações possíveis. Mas parece claro que o defeito não é da situação específica, mas do utilitarismo ele mesmo.
Nossa resposta, no entanto, será diferente. Muito provavelmente existem várias pessoas necessitando de transplantes, ou outro tipo de recursos que possuímos, e que produzem muito mais bem para o mundo do que nós mesmos. Ou seja, a situação de Mário não é nenhum pouco específica. Todos nós vivemos sob essa perspectiva agora mesmo.

A terceira crítica: a inviabilidade do teste.

As duas próximas críticas não são necessárias se concordarmos com pelo menos uma das anteriores, mas caso não concordemos, temos outros motivos, dessa vez fáticos para jogar de uma vez por todas, o utilitarismo no lixo. É impossível elaborar um teste confiável para determinar a utilidade de um ato.
Embora pense que método de teste algum seja mais confiável do que a intuição que temos a respeito de seus resultados (Eu gosto do perfume do jasmim, se um teste aponta o perfume do jasmim como um bom perfume, considero o teste bom. Se o teste aponta o perfume do jasmim como um perfume ruim, eu não mudarei a minha opinião sobre o perfume do jasmim, mas sim passo a considerar o teste ruim). Além de todas as objeções ao método colocadas por Heidegger, Wittgenstein, Gadamer, Rorty, Habermas, etc. Vamos ignorar esse ponto geral, e criticar especificamente o teste do bem utilitarista.
Suponhamos que adotemos o bem estar como parâmetro para avaliar o bem de um ato. Nesse caso, teríamos problemas com as pessoas de gostos refinados (leia-se caros). Imaginemos que Abigail goste muito de caviar beluga, tanto que comer caviar lhe proporciona tanto prazer que supera em muito o prazer de Pedro, que gosta bastante de carne de porco. Deveríamos desviar recursos para possibilitar o “bem maior” que o caviar beluga proporciona a Abigail possa não ser prejudicado pelo “bem menor” que a carne de porco proporciona a Pedro? Novamente não seria justo que Pedro fosse prejudicado por possuir um gosto menos caro. Devemos, portanto, abandonar o utilitarismo psicológico, subjetivo, do “bem estar”.
Não nos resta alternativa para manter o utilitarismo, que não a adoção de um teste objetivo, que seja independente dos gostos das pessoas, um utilitarismo de recursos, portanto. Nesse caso, teríamos problemas o mesmo problema, relacionado às diferenças entre as pessoas, mas de forma diferente.
Imaginemos que Rita possui alergia a arroz, e que dadas as circunstâncias de clima e terreno, a produção de arroz seria mais útil para a nutrição de seu país do que qualquer outro tipo de grão. A resposta utilitarista, nesse caso objetiva, nos recomendaria produzir apenas arroz, de forma a proporcionar o maior bem possível à população do país.
A conseqüência da produção exclusiva de arroz poderia acarretar em uma deficiência nutricional de Rita, ou então na necessidade de que Rita importe outros tipos de grãos do exterior, o que oneraria sobremaneira sua renda, impossibilitando a ela o aproveitamento igual de seus recursos, em relação às demais pessoas da sociedade. Isso seria útil, no sentido utilitarista do termo, mas não seria justo com Rita, que não pode ser considerada culpada por sua alergia.
Espero ter oferecido argumentos suficientes para abandonarmos o utilitarismo tanto do ponto de vista da validade quanto do ponto de vista da faticidade.
Por fim, é necessário corrigir um erro. Skinner, ou nenhum outro behaviorista que eu conheça, nunca ofereceu argumento algum contra o utilitarismo, nem se pode deduzir uma crítica ao utilitarismo das linhas gerais dos behaviorismos. Muito provavelmente, aliás, Skinner fosse utilitarista caso o perguntassem. Não posso afirmar isso com toda a certeza, mas isso não diz nada, nem contra Skinner, nem a favor do utilitarismo.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

A natureza da decisão jurídica: uma questão de justificação

A maioria das preocupações com o poder judiciário se refere à questões de fidelidade. Questões de fidelidade são questões sobre o respeito que os juizes têm pelas normas elaboradas pelo legislativo. Essa questão sofre duas críticas. A primeira é a trivialidade de sua proposição. Os juizes devem ser fieis às normas legitimamente promulgadas pelo legislativo, todo mundo concorda com isso, inclusive os próprios juizes frequentemente acusados de infidelidade. A segunda deriva da primeira, se alguém diz que os juizes devem ser fiéis à lei e não consideram isso trivial, eles estão dizendo que um juiz só é fiel à lei quando segue exatamente o que está escrito em seu texto, como se esse fosse a própria norma, ou pior, defendem que em caso de dúvida, o juiz busque na história, a verdadeira intenção do legislador (sic) o que é um absurdo completo.

Acontece que uma norma jurídica, uma lei, é uma norma de um texto, e não o texto. Não há texto sem norma, nem norma sem texto nesse sentido, e, portanto, o juiz tem uma tarefa interpretativa à sua frente, ao tentar extrair a norma dos textos. No entanto, essa não é a pior das conseqüências do anseio pela fidelidade. A pior delas é a crença na vinculação entre a legitimidade da decisão e os processos mentais que levam o juiz a tomá-la. Na verdade, o que se passa “na cabeça do juiz” tem pouca, ou nenhuma importância. Explico com um caso.

Imaginemos que existe um juiz que não gosta de velhinhos japoneses, e tem em suas mãos um caso civil, envolvendo um velhinho japonês e um jovem caucasiano. Suponhamos que seja um caso bastante complexo, e que o juiz após cuidadosa reflexão chegue à conclusão de que o velhinho japonês tenha razão. Até aqui tudo bem, agora vamos trabalhar com duas hipóteses sobre a decisão que poderia vir dessa conclusão.
  • O juiz decide contra o velhinho japonês, movido por sua ideologia anti-velhinhos japoneses. Justifica a decisão da melhor forma possível, embora reconheça internamente que a justificação não passa de uma gambiarra, na melhor das hipóteses e profere a sentença nesse sentido. O velhinho japonês insatisfeito com a decisão entra com um recurso na segunda instância e o tribunal, suponhamos que sem preconceitos contra velhinhos japoneses, ou contra jovens caucasianos, chega à conclusão de que o juiz de primeira instância acertou, e que o jovem caucasiano tinha clara razão quanto à causa em questão, mantendo a decisão inicial em sua totalidade. (suponhamos que nós concordemos que a decisão deveria mesmo ser em favor do jovem caucasiano)
Conclusão de 1: O juiz de primeira instância acertou, embora tenha agido com preconceito, uma vez que justificou a decisão em prol do jovem caucasiano com bons argumentos jurídicos, que foram considerados corretos pelo tribunal.

  • O juiz decide a favor do velhinho japonês, embora tivesse uma ideologia anti-velhinhos japoneses. Justifica a decisão da melhor forma possível, embora sinta genuína dificuldade para fazê-lo, embora tenha bons argumentos jurídicos para tal e profere a sentença nesse sentido. O jovem caucasiano japonês insatisfeito com a decisão entra com um recurso na segunda instância e o tribunal, suponhamos que sem preconceitos contra velhinhos japoneses, ou contra jovens caucasianos, chega à conclusão de que o juiz de primeira instância errou, e que o jovem caucasiano tinha clara razão quanto à causa em questão, reformando a decisão inicial em sua totalidade. (suponhamos que nós concordemos que a decisão deveria mesmo ser em favor do jovem caucasiano)
Conclusão 2: O juiz de primeira instância errou, embora tenha agido de boa fé e tentado decidir em favor de quem lhe parecia ter razão, a despeito de seus preconceitos quanto ao tema. No entanto, os argumentos jurídicos levantados no caso eram claramente favoráveis ao jovem caucasiano, o que levou o tribunal a reformar a decisão.

O que podemos extrair desse pequeno caso, que se não é dos mais comuns, também não é dos mais raros, é que o juiz deve decidir da forma como melhor conseguir argumentar, tentando fazer o melhor trabalho possível em prol da decisão que preferir, não importa se no fundo acredite estar agindo movido por preconceitos. Em outras palavras, o juiz deve decidir primeiro, de forma intuitiva, e justificar depois, da forma como já acontece na maioria das vezes hoje em dia. Se conseguir justificar a decisão, ótimo, ela está correta, independentemente das causas que levaram o juiz a ela. Se não conseguir justificá-la, a decisão deverá ser reformada, quer seja por embargos de declaração, quer seja por apelação à segunda instância.

Em suma, a qualidade de uma decisão judicial se mede pelos fundamentos levantados pelo juiz, e não pelos processos mentais que o levaram a isso. Trata-se da aplicação do mesmo princípio do legislativo: não importa o que os legisladores pretendiam com a elaboração de uma lei, mas sim a lei que de fato promulgaram.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Bem vindos estrangeiros!

Caros visitantes,

Após alguns anos fechada, a taverna está novamente aberta. Esse lugar, pretente ser um espaço aberto para debates e conspirações. Um lugar onde pretendemos reunir teoria e prática. É portanto um espaço para debates políticos, filosóficos, psicológicos e sociológicos, e qualquer outro tema nesse sentido que possa ser inventado.

Além disso, pretendo manter uma certa personalidade, o que significa que aqui também serão discutidas opiniões mais pessoais, sobre culinária, cinema, música, videogames e esportes.


Abraços,
M. M. Araujo